25/12/2016

Saber de cabeça e Saber de cor

(http://realismoarte.blogspot.pt/2009/02/jose-malhoa-o-fado.html)


   Desenganem-se aqueles que fazem um uso indiscriminado das expressões saber de cabeça e saber de cor, sob o pressuposto de que gozam de sinonímia. Essa não é a minha opinião e venho aqui dizer porquê.

   Trata-se de duas expressões idiomáticas muito comuns no uso da nossa língua. Saber de cabeça deveria ocorrer, a meu ver e em bom abono do rigor semântico, em contextos locutórios desprovidos de envolvência sentimental. Já o saber de cor invoca o filtro ilusório do coração.

   Bem sei que, assim, estaremos a dar sequência a um equívoco ancestral, segundo o qual o ser humano pode pensar com a cabeça e com o coração e, nessa perspetiva, tomar decisões preferencialmente com a razão ou com a emoção. A verdade da ciência já há muito tempo nos veio dizer que ao cérebro cabe a exclusividade de pensar e, ao coração, a função de bombear sangue para todas as partes do corpo. É assim, a anatomia não engana. Contudo, a língua afirma-se pela consagração do seu uso, devido ou indevido, pouco importa. Não vamos agora banir a palavra átomo do nosso léxico, só porque a Física Quântica nos veio provar que o nome que escolhemos para designar essa unidade básica de matéria não faz, afinal, jus à sua etimologia (do grego átomos – indivisível).

   Face a esta “declaração de princípios”, sabe-se de cabeça a tabuada, as capitais dos diferentes países ou os números de telefone de colegas e conhecidos. Já os contactos dos amigos e os de quem amamos sabemo‑los de cor, tal como os nomes das pessoas que marcaram a nossa vida ou uma rua/localidade onde fomos felizes (ou não). Nesse sentido, aponta o percurso diacrónico da palavra “cor”, usada na sua valência sentimental. Esta tem origem no superestrato latino (cor, cordis - “de coração”), em contraponto à “cor” da outra expressão (color, coloris – “tom, tinta”).

   Estão, desta forma, legitimados os versos cantados que tão bem conhecemos…

        «Meu amor sei-te de cor» (Paulo Gonzo);
        «Lisboa, sei-te de cor» (Linda Leonardo)

   Ou aqueles que foram ditos…

        «A carta que eu sei de cor» (Guilherme de Almeida)

   Melhor se entende agora o confronto poético entre as palavras “coração” e “razão”, como em «Importuna Razão, não me persigas», onde Elmano sucumbe ao poder da primeira, face à fraqueza da segunda; ou em «Estranha forma de vida» (coração independente […], eu não te acompanho mais), quando Alfredo Duarte e Amália Rodrigues cedem à força da segunda, perante a desorientação da primeira.

2 comentários:

  1. Alcídio, depois de ler o seu post, cheguei a uma conclusão:
    - Sei de cabeça os nomes de tanta gente! O suficiente para encher os contentores de um transatlântico.
    - Mas os nomes que sei de cor cabem-me na carteira.

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    1. E eu sei que tem lá um cantinho para mim, Letícia, entre o rímel e os lenços de papel :)

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