Caça ao pleonasmo
“Gritei alto”? “Encarei-o de
frente”? Sim, está bem, mas qual é o problema?!
Os pleonasmos estão inscritos no
uso dial da língua com tal naturalidade que se torna difícil tomar deles
consciência, a não ser, claro está, aqueles que têm sido perseguidos, caçados e
açoitados no pelourinho linguístico. Pegou moda fuzilar todo o falante que diz “ambos
os dois” ou aquele que “desce para baixo”. Enfim! Bojardas de quem acha que
nunca escorregou na discreta pista da tautologia.
1- A verdade é que não há quem
nunca tenha recorrido a expressões pleonásticas (isto, só para começar);
2- A maioria dos falantes que
arreia nos outros por causa do “ambos os dois” arrota pleonasmos, diariamente,
como se de postas de pescada se tratasse (ah, pois é!);
3- E qual é o problema do seu uso,
afinal?!
Dizem algumas “mentes brilhantes”
que ao dito só podemos recorrer quando confinados a um registo literário. Acrescentam
os mesmos “doutos” que tal recurso expressivo serve para reforçar uma ideia, como
se, no dia-a-dia, não o pudéssemos fazer com igual propósito!
Quem nunca disse “há uns anos
atrás” que atire a primeira pedra. Se nos referimos “há uns anos”, então é forçosamente
atrás.
«Ah, está bem, ó Alcídio, mas
esse não é tão grave como o ambos os dois».
«Não é tão grave?! Então, mas
agora temos uma graduação de gravidade pleonástica?! Essa agora!»
Bom, deixemo-nos mas é de
purismos descartáveis, principalmente daqueles que são fomentados pela rádio e pela
televisão, através de programas ditos de “bom português”, mas que, bem vistas
as coisas, não passam de amadorismo linguístico que apenas serve para encher
chouriços.
Já agora, “sinais exteriores de
riqueza” não será também um pleonasmo? É que, em termos semióticos, todo o
sinal é exterior, caso contrário não poderia ser captado pela visão ou por
qualquer um dos outros quatro sentidos. O mesmo não acontece com “sinais de
riqueza exterior”, uma expressão que contrasta com “sinais de riqueza interior”.
Nestes dois casos, estamo-nos a referir ao perfil moral dos indivíduos, o que
não acontece com o primeiro exemplo (com sentido de ostentação ou fausto). E
quantas vezes os caçadores de pleonasmos já não proferiram aquela expressão? E
quantas vezes a já não verbalizei eu?
Bom, deixem-se lá dessas coisas,
está bem?
Até qualquer dia.
Alcídio, a mim também me ensinaram isso: que o uso do pleonasmo está confinado ao texto literário. Mas, vistas bem as coisas, por quê estar a criticar uns e a permitir outros? É como uma pessoa dar um raspanete a alguém que cuspiu no chão em plena rua e, logo a seguir, sentar-se num banco de jardim e começar a cortar as unhas dos pés. Ou puxamos as orelhas aos dois ou então deixamo-los em paz.
ResponderEliminarA sua rubrica "Língua-de-trapos" é extremamente útil e já comecei a colecioná-la com copy/past (salvaguardando os direitos de autor, claro).
É, Letícia, os falantes da nossa língua recorrem constantemente às figuras da retórica nos enunciados correntes da comunicação diária, principalmente a metáfora e a metonímia. Aliás, já foi feito um estudo sobre esta matéria e a conclusão a que os investigadores chegaram é muito esclarecedora: alguns falantes são preponderantemente metafóricos, enquanto outros revelam uma tendência metonímica. Expressões como “árvore genealógica”, “maçã do rosto”, “nascer do sol” ou “assistir à bola na televisão”, “dar o telemóvel a alguém” e “ter um hectare de vinho” são disso alguns exemplos.
ResponderEliminarQuanto ao "copy/past" da minha rubrica, sirva-se à vontade (é um prazer saber que o faz).
E sem “adiar para depois” cá estou eu a fazer um comentário.
ResponderEliminarSempre que leio estes textos apetece-me “bater palmas com as mãos” pois são sempre "de lhes tirar o chapéu da cabeça”, de "certeza absoluta" que não sou só eu que os considero “brutais”.
O “elo de ligação” entre o aprender e o divertir com o que escreves "é verdade verdadeira” muito forte, de “certeza absoluta” que todos concordam comigo.
Apetece-me "gritar alto":
-Adorei.
Ena tantos! Cá está, a nossa língua (como as demais) é uma incubadora de pleonasmos. Daí a minha pergunta: por que razão uma atitude persecutória para uns e a indiferença total para outros?
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