18/12/2015

Não arranquem de mim...

Já pensaram os meus leitores no poder expressivo do verbo “arrancar”, tão vulgarizado na linguagem comum? Pois deem-lhe um ambiente poético e ele irá retribuir-vos o jeito. Será generoso convosco. Permitir-vos-á aceder ao vosso peito magoado, doído; ao timbre próprio dos gemidos de alma.
No Dicionário do Português Atual (edição de 2011) de António Houaiss, pode ler-se, a propósito da entrada “Arrancar”:

“Verbo bitransitivo (i.e. não é só o que se arranca, mas a quem se arranca); tirar, arrebatar, extrair fazendo uso da força; estar a agonizar; a morrer”.

Repare-se na violência do alcance semântico deste verbo. Arrancar pressupõe o uso da força adversa que nos pode levar à agonia e mesmo à morte. Disso nos deu boa conta Saramago:

Arranca metade do meu corpo, do meu coração, dos meus sonhos. Tira um pedaço de mim, qualquer coisa que me desfaça. Me recria, porque eu não suporto mais pertencer a tudo, mas não caber em lugar algum”.

Pois cá vai:

Tirem-me o lugar onde fui nascido,
Tirem-me do sério, tirem-me da vida,
Tirem-me deste poema que não rima,
Tirem-me um rim, tirem-me o sangue.

Extraiam-me o dente do siso
(que quero ser menino).
Acabem com o que me resta.
Extraiam-me o peito quase vazio,
Roubem-me o sorriso (se o houver),
Extorqui de mim o que vos sirva.

De tudo, levem-me um pouco.
De tudo, aguento o que seja,
Mas não me levem…
Não me levem…
Não levem…
Não!
Não arranquem…
Não me arranquem…
Não arranquem de mim…
Não me arranquem o amor, por favor!
Esse é meu. Cativei-o.
Prendam-me a ele.
                   O autor? É o que menos importa.

6 comentários:

  1. Ui! Que lindo!
    A poesia liberta-nos.

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    1. Obrigado, Letícia. É, a poesia tem esse poder especial. Liberta-nos, faz-nos companhia e é uma ótima confidente.

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  2. Chorei e a culpa é tua, Alcídio.
    Dizes-me que é o autor desse poema?

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    1. Hoje, descobri que alguns comentários são guardados em spam. Uma chatice, pois estava lá o teu. Quase um ano volvido, peço-te esta desculpa serôdia.
      Sobre a autoria do poema, respondo-te da mesma forma que respondi ao outro anónimo: uma vez escrito, o poema deixa de ser de quem o criou. Espalha-se pelo mundo e entra em nós como pertença. É meu, é teu... é de todos os que o adotaram.

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  3. Fizeste-me chorar, Alcídio.
    Gostava de saber quem escreveu o poema. Dizes-me?

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    1. Não sei com quem estou eu a dialogar, mas isso não importa para o efeito.
      Vou responder-te desta forma: uma vez escrito, o poema deixa de ser de quem o criou. Espalha-se pelo mundo e entra em nós como pertença. É meu, é teu... é de todos os que o adotaram.

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