Falar em Bernardim é
entrar num universo de mistério, desde logo, devido à ausência de certezas
biográficas a seu respeito. O arcano adensa-se mais ainda com a leitura da sua
obra que, apesar de não ser vasta, não merece a injustiça de se ver reduzida à
novela “Saudades”. Com efeito, há na história da literatura obras que acabaram
por “aniquilar” o autor. É disso um bom exemplo “As aventuras de Pinóquio” do florentino
Carlo Lorenzini (ou
Carlo Collodi), pois não há quem não lhe conheça a criatura, enquanto poucos
são os que o sabem como criador.
Apesar de assim não
ser na relação Bernardim/Menina e Moça, o facto é que, não aniquilando o autor,
esta novela o “tomou nos braços” até aos dias de hoje.
Para o mistério contribui
ainda o facto de o texto original permanecer escondido sob o manto das suas três
edições póstumas.
Nesta bruma densa que
nos impede um acesso nítido à sua biografia, enxerga-se, no entanto, um
louvável tributo que prestou à língua portuguesa, pois foi com ela que deu à
estampa a sua arte, em contraciclo com os demais escritores palacianos da época,
que optaram pela expressão castelhana.
Mais, o enigmático
Bernardim, “énio de Camões”, faz questão de nos remeter à incerteza de saber se
a obra “Saudades” é ou não uma prosa autobiográfica. Esconde as suas
personagens atrás de anagramas, abrindo a suspeição da sua cumplicidade para
com elas (veja-se, por exemplo, Binmarder como anagrama de Bernardim).
Esconde-se ele próprio travestido de Menina e de Moça, a coberto de uma extensa
“cantiga de amigo”.
Uma coisa é certa,
Bernardim revela-se um admirador da matriz genética da mulher e presta-lhe um
ousado tributo, numa época extremamente patriarcal. É uma Menina que toma para
si a coita de amor, que sofre calada e que partilha com uma Dona errante igual
desventura: apartamento, saudade, ausência, fatalismo, amor sofrido,
afastamento da cousa amada. Sentimentos que só um coração feminino alcança na
plenitude. É um par de Cavaleiros aventureiros, de ação, que tudo resolvem com
o peso de uma espada afiada. E que matam, se preciso for, para resolver um
problema. Por um lado, homens que derramam sangue e cedem à fúria cega da
testosterona como única solução; por outro, mulheres que desembainham palavras
e impulsos racionais para igual efeito. Amam e sofrem as mulheres, cortejam os
homens com desamor viril.
No seu monologo, a Menina
funde-se com a natureza e encarna o rouxinol que, tal como ela, sofre de exílio
amoroso. Este sucumbe fulminado pela coita, “sorte” que não foi dada em igual
medida à Moça chorosa.
Há aqui uma aparente
contradição, quando é sabido que a ave é macho, pois só a estes é permitido o
tão conhecido canto. Digo aparente, porque o que o autor nos vem dizer é que,
baixado à sua condição natural, um macho (um homem) também chora de saudades.
Se a Língua
Portuguesa é de Camões, a Alma Lusitana é de Bernardim. Um povo rendido ao fado
e à mónada sentimental inscrita nas “Saudades”; uma forma de estar na vida sem
correspondência planetária.
É também para isto que servem os blogues. Lembrar os maiores da nossa cultura. Concordo, um hino ao valor das mulheres através da arte da escrita.
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