08/03/2015

É impossível traduzir, mas é impossível não traduzir





















       Dificilmente haverá alguém que nunca se tenha confrontado com as questões que decorrem da tradução de obras literárias. Não se trata de um fenómeno exclusivo das belas letras, no entanto é nelas que a polémica ganha uma especial dimensão, com uma particular incidência na tradução de poemas.
Na lírica, mais do que na narrativa e no drama, explora-se a sublimidade da forma, de tal maneira que esta não pode ficar nunca aquém da valência do conteúdo, sob pena de termos que ler poesia de consumo fácil, dessa que grassa exponencialmente nos escaparates das livrarias da moda. E esta não tem que temer o poder deformador do fenómeno da tradução, pois não se distorce o que já nasce torto.
Centremo-nos, pois, nos grandes clássicos da literatura. Esses que escrevem não com a mesma naturalidade como respiram, mas com árduo labor e esforço linguístico e literário. Só assim se percebe aquilo a que se referia Oscar Wilde quando escreveu:
«Hoje, trabalhei muito. Passei a manhã a tirar uma vírgula de um poema e à tarde voltei a pô-la»
É aqui que o signo linguístico ganha especial relevo. Ele é tido como arbitrário para a grande maioria dos académicos. No entanto, retenhamos o pensamento do mexicano Octavio Paz que, num dos seus notáveis ensaios, se atreve a pôr em causa tal pressuposto tido como irrefutável.
Não quero aqui reproduzir o diferendo secular instituído entre convencionalistas e naturalistas. Para os leitores menos familiarizados com esta temática, apenas adianto que os primeiros defendem a arbitrariedade do signo linguístico e os segundos, a sua natureza motivada. Ou seja, se para os convencionalistas a palavra “docente” nada tem que ver com o “objeto” representado na mente do falante, através do seu conceito (deu-se-lhe essa designação, como se lhe poderia ter dado outra), para os naturalistas, existe uma relação entre o significante “docente” e o seu referente material (pessoa que ensina). A questão não deve incidir na palavra portuguesa “docente”, nem na latina “docere”, ou na grega “dékomai”. No caso dos naturalistas, é a raiz indo-europeia “dek/dak” que goza de motivação face ao seu referente.
O exemplo mais evidente do pressuposto naturalista está nas palavras onomatopaicas, que reproduzem o som de um objeto/fenómeno do mundo real (eg. a palavra “tilintar”). Octavio Paz recorre ainda ao fenómeno da glossolalia (sons produzidos num determinado ritual paranormal) para refutar a total arbitrariedade do signo linguístico, alegando que, independentemente do local do planeta onde seja praticada (a glossolalia), os sons por ela produzidos acabam por se revelar muito semelhantes entre si.
Se tomarmos como credível o carácter motivado do signo, percebemos bem melhor como é extremamente complicado o trabalho do tradutor de poesia. Tenho para mim que traduzir a palavra “lágrima”, por exemplo, para “tear”, “riva” ou “рвать” constitui uma adulteração do seu poder expressivo, na medida em que se perde a sonoridade poética dos fonemas /i/ e /a/, tal como da oclusiva velar e sonora /g/.
Perante esta celeuma e salvaguardando o direito que todos temos de aceder à literatura mundial, reitero o princípio:

É impossível traduzir, mas é impossível não traduzir.

1 comentário:

  1. Quanto não se perdeu então com a passagem dos escritos de Pessoa de inglês para português? Se tivesse escrito sempre na língua lusa, teria sido para nós mais evidente todo o seu brilhantismo.

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